“A responsabilidade é pesada, o trabalho é árduo; mas o prazer, a satisfação de viver palavras tão oportunamente concatenadas, ou tão certas, ou tão belas, compensa tudo.
Se o público compreendê-las, assimilá-las e amá-las, teremos lucrado nós, eles,e o País também. Se isso não acontecer a culpa será principalmente minha, mas pelo menos guardarei dentro de mim a consoladora idéia de que tentei.
Por isso escolhi a Liberdade...”
(Paulo Autran, sobre a peça Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, na qual atuou em 1964, logo após o Golpe Militar)
foto: ZOCCHIO, M, BALLARDIN, E. Pequeno Dicionário Ilustrado de Expresões Idiomáticas. Sâo Paulo: DBA, 1999.
Estamos encerrando um ciclo. Desde julho deste ano, eu convivo com essas “figuras”, falando da “boca pra fora”, se não sobre tudo, sobre quase tudo. E tem sido assim desde o começo. Antes, éramos sete. Dois “desertores” preferiram outras disciplinas, as ruas, o povo, as praias, as suas pesquisas individuais e, por não precisarem dos créditos, foram embora. Lamento muito, Owen e Frank, pois fizeram muita falta, principalmente na última parte do curso, pois, por motivos diferentes, dariam contribuições muito interessantes com discussões e textos escritos e palavras cantadas. Mas de alguma forma, estão aqui, em nossas palavras, em nossas discussões, pois acreditamos de verdade que não somos os mesmos depois de conhecermos novas pessoas . Além do que, suas razões para não continuar são justas, ainda mais que estamos falando de liberdade.
E os que ficaram? É deles que eu preciso e quero falar, dos que tiveram a liberdade de ir, mas ficaram. Foram tantos pontos de vista expressos, tantas discussões produtivas, tantos gestos de solidariedade, tantas impressões, tantos estereótipos desmontados, tantas questões sobre a língua portuguesa e a cultura brasileira, tanta alegria e tanta angústia partilhada, que eu não poderia deixar de registrar aqui essa sensação adiantada de saudade. Estamos acabando um ciclo, avançadíssimos estudantes de português. E agora? Como é que fica?
Para não chorar sobre o leite derramado , vou fazer um breve balanço de nossas atividades. Nesta fase do curso (de agosto até aqui), demos ênfase à leitura de textos escritos e audiovisuais, como ponto de partida para discussões, produção de novos textos, expressões de pontos de vista, discordâncias, argumentações, negociações de conflitos e de sentidos, de modo que o estudo da forma (as tão invocadas “regras gramaticais”) era uma conseqüência e não a causa do processo. Os poucos exercícios estruturais foram trazidos ou produzidos a partir das ocorrências detectadas na produção dos estudantes, ou mesmo a partir de suas solicitações. Optamos por ler e escrever ao máximo, e principalmente estimulamos a socialização dos textos lidos e produzidos por esses estudantes, ponto no qual o blog foi a ferramenta fundamental.
Tive a possibilidade de experimentar, arriscar, errar, rever, experimentar outras possibilidades e ajustar o planejamento aos interesses de quem realmente precisa do curso. O lado bom de lidar com estudantes de proficiência de nível intermediário para cima é que podemos cometer erros sem que as conseqüências sejam graves. Por isso, experimentei distribuir vários livros curtos de temas e gêneros variados, originariamente destinados a estimular a leitura entre estudantes da rede pública. A idéia não era original (nada aqui é): cada um apresentava o texto que estava lendo, com a recomendação de ser objetivo na medida do possível, já que os outros não tinham lido o texto apresentado. Apesar de ter várias alternativas (eles tinham a liberdade de trocar o livro, se não gostassem), a sistemática não funcionou. Alguns dos livros eram ou infantis demais ou específicos demais. Além disso era difícil para cada um manter a atenção dos colegas quando apresentava um livro que ninguém mais tinha lido e naturalmente eu não tinha como ler todos os livros, o que se tornou outro fator complicador.
Foi então que tive a idéia de selecionar três livros para uma leitura em comum. Defini alguns critérios. Tinha que ser escrito por um(a) autor(a) brasileiro(a), tinha que ser em prosa, tinha que ser contemporâneo, tinha que tratar de temas da cultura e da história do Brasil que pudessem ser amplamente discutidos em sala, que suscitassem outras leituras e abordagens. Os livros eram “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, “Em Liberdade”, de Silviano Santiago, e “Estação Carandiru”, de Drauzio Varella. Justamente este, o único que não tinha lido (só conhecia o filme), foi o escolhido pela turma. Era o livro de que menos gostava para este fim, pois apresentava muitos diálogos em registro informal, de variedades lingüísticas cruzadas por fatores regionais, etários e, o pior, com provável processo de estereotipia nas representações das falas dos penitenciários, já que Varella não esclarece como ele registrou os diálogos introduzidos por travessão (o escritor não é lingüista, nem gramático, pra sorte dele). Fazer o quê? Quem pergunta quer saber. Fui pra casa e passei um fim de semana devorando o livro e tudo o que pude ler e assistir sobre o tema do sistema penitenciário do Brasil. Refiz boa parte do planejamento e fui adiante. Uma surpresa boa foi a leitura. Não só parecia ter bom estilo, fácil de ler, sem ser superficial, como tratava de temas que não ficavam encerrados na prisão, que facilmente circulavam entre a sociedade “livre” e o sistema prisional, estabelecendo um diálogo muito interessante. O problema da “estereotipia” das falas dos reeducandos persistia, mas resolvi tratar disso antes de iniciar a leitura com o grupo. E não me arrependo, pois nunca tive problemas de partilhar com estudantes as minhas incertezas, as minhas inseguranças. Avisei-os que tomassem cuidado para não misturar os registros diferentes encontrados no livro e seguimos em frente.
Lemos, escutamos e vimos muita coisa a partir do livro. Desde um artigo que trata das gírias de presos que caíram no domínio público no Brasil, passando por artigos sobre a história das prisões no Brasil, sobre ocupação e resistência nas favelas em seu surgimento no início do século XIX, sobre educação nos presídios, dois documentários sobre o sistema penal brasileiro, o rap dos Racionais MC sobre o cotidiano de um “truta” no Carandiru até a assistência ao tão propalado filme “Tropa de Elite” (no cinema da UFBa, sem piratarias!) e ao “Carandiru”, de Hector Babenco. Dessa forma, não só demos conta de várias abordagens do mesmo tema, evitando-se o discurso monolítico e estéril imposto pelo professor, como também passeamos por uma razoável diversidade de gêneros lingüisticos, textuais, artísticos e formais. Saímos da sala de aula, não só para assistir aos filmes, mas sobretudo para ter uma melhor dimensão da problemática da violência e da desigualdade social do Brasil. Naturalmente, nossa abordagem não se pretende antropológica, sociológica, histórica, mas sem dúvida o panorama proporcionado pelos textos diversos, dentre os quais alguns estão citados acima, se não ajuda a esclarecer sobre como se dão as relações sociais no Brasil, pelo menos ofereceu questões muito interessantes para discutirmos, discordarmos, revermos posições, nos indignarmos, refletirmos sobre as possibilidades de mudança, compararmos com a realidade dos Estados Unidos e de outros países; ao longo e depois do que era possível adquirir novo vocabulário, novas estruturas lingüísticas, entender certas construções não-padrão de largo uso entre os falantes nativos, perceber a distância entre a variedade padrão e as outras variedades e a simetria da distância entre as classes sociais e suas implicações raciais no Brasil e todas as ambigüidades e contradições observadas.
Ao lado de todo esse processo, tínhamos o blog. Este tornou-se um instrumento privilegiado de interlocução entre mim e a turma, e o mais importante, entre a turma e outros brasileiros e estrangeiros que surpreendentemente têm feito comentários dos mais variados tons aos textos de meus estimadíssimos estudantes. Confesso que minha vaidade fica emplumada ao ver que meu mérito não está em criar, controlar, ditar, mas sugerir, indagar, instigar, provocar, insistir e ver os resultados fugirem do meu controle. O blog nasceu de um projeto que elaborei e apresentei a eles, mas quem o criou mesmo foi Alida, quem o batizou foi Michelle, quem escreve nele são Michelle, Alida, David e Baird, que também têm a liberdade de negociar as pautas e têm a última palavra nas correções (sim, eu corrijo os textos, mas nem sempre eles acatam e às vezes deixo passar alguma coisa!). Este inclusive não é o último texto do blog. Além dos trabalhos finais maravilhosos que eles estão preparando (aguardem!!!), espero que os autores não deixem de usá-lo como forma de praticar o português escrito e principalmente como forma de preservar os laços criados aqui.
Espero também que eles tenham entendido a proposta de trabalho, que não desistam nunca de aprender e aprimorar o domínio da quinta língua mais falada no mundo, que não deixem nunca de quebrar a cabeça com a cultura e a sócio-história do país da diversidade e da adversidade, e que escrevam sempre que puderem para o quase ex-professor de português. E que continuem os comentários às publicações.
Enfim, que tenha ficado claro que é para fora da sala de aula que o nosso trabalho se dirige. E que a liberdade não seja condição apenas para quando se está fora da sala, que ela exista como condição fundamental para qualquer aprendizagem, para qualquer tipo de convivência, para todas as pessoas, de qualquer nacionalidade, estejam onde estiverem. E que o mundo (e não só o Brasil!) fique melhor o suficiente para que as nações tenham suas soberanias respeitadas, que todos tenham liberdade de ir e vir e viver dignamente, que os presidiários não sejam tratados como bichos (e que os bichos sejam tratados como gente!), que os policiais e agentes penitenciários não sejam tão mal-remunerados e despreparados ética e tecnicamente. Que a discussão sobre Direitos Humanos seja cotidiana e atravesse disciplinas acadêmicas e mesas de bar e cafés da manhã, que se transforme em gesto, seja conversando com a empregada doméstica ( de verdade, tentando conhecer a pessoa e não a vendo como alguém que deve estar feliz por ter um prato de comida), seja pensando em estratégias mais eficazes que a caridade e a indulgência para encarar a desigualdade. Para que, enfim, não precisemos, não importa em que lugar do mundo, viver armados ou protegidos por pessoas armadas, morar ou estudar ou trabalhar em lugares em que o sol também nasce quadrado ou nem pode ser visto por causa de um grande muro, que nos protege (?) do medo ao mesmo tempo que nos faz também prisioneiros atrás da grade de ferro.
Alex Simões
O verdadeiro “gringo” aqui, ou que aprende com os gringos a ver a sua língua e a sua cultura como se fosse um.